Ontem, em sala de aula, conversando com os alunos, descobri que eles não conheciam as cantoras Mônica Salmaso e Cida Moreira. Lembrei que poucos sabem quem foi o ator Rubens Corrêa. Então criei essa página dedicada aos grandes artistas, que caíram no esquecimento, que não estão na mídia, mas que são fundamentais (na minha opinão) para a formação de artistas.
Rubens Corrêa
O cálice, o cavalo, o fogo e o menino.
"Fui convidado para conversar com vocês sobre o ator; sei que muitos
aqui jamais representaram, e outros deram apenas os primeiros passos
neste caminho labiríntico que é o mundo da interpretação. É uma tarefa
que exige de mim sensibilidade e coragem; acho uma grande
responsabilidade falar aos jovens, e é com muita emoção e prazer que
passo adiante as humildes sementes do meu trabalho artístico, com a
esperança de que alguma utilidade possa ser encontrada nelas e que de
alguma maneira elas possam lhes tornar a caminhada menos solitária e
mais solidária, na medida em que esta receita muito pessoal provoque
dúvidas e reconsiderações, ou toque o sagrado dentro de cada um de
vocês, ou reacenda aquela esperança cega que Prometeu garantiu ser a
conquista mais urgente para a sobrevivência do homem neste planeta.
O grande poeta e dramaturgo alemão Büchner escreveu numa cena de sua
peça "Woyseck": "Cada ser humano é um abismo e a gente tem vertigens
quando se debruça sobre um deles."
Acho que nós atores somos duplamente esse abismo-espelho: como seres
humanos e como artistas. Nossa missão é provocar vertigem e o
revisionamento do abismo dentro de cada espectador, para que depois de
cada mergulho em nossos personagens-propostas essas pessoas pensem, se
emocionem, compreendam e amem com nova e maior intensidade.
Eu, Rubens Corrêa, ator e artista de teatro, vinte e oito anos de
profissão, e séculos e mais séculos de um longo período não sei onde,
ofereço a vocês com apaixonada humildade o meu aprendizado nesta
caminhada em cima das brasas sem se queimar que é a condição
necessária para poder representar e viver com algum significado neste
nosso bizarro país sul-americano.(...)
O CÁLICE
Representar para mim é a possibilidade que me foi dada de me comunicar
com o meu semelhante através de uma troca de idéias, imagens,
palavras, gestos e emoções. Um divertido, fascinante, e muitas vezes
cruel jogo que mistura ficção e realidade, consciente e inconsciente,
sagrado e profano, amor e ódio, vida e morte. Uma Paixão.
Através dos anos venho elaborando em cima das tábuas o meu trabalho,
tentando sempre o difícil equilíbrio entre as conquistas técnicas e a
simplicidade da execução. Aqueles instantes, todas as noites, em que
represento um papel, são sempre os melhores momentos do meu dia. Isso
quer dizer que levo para o palco meus sentimentos, minha idéia, minhas
alegrias, meus abismos, meu horror e minha luz. Diariamente filtro
essas emoções através das necessidades de cada personagem, e recebo de
volta para mim mesmo uma nova compreensão de meus problemas - e
acrescento ao personagem um novo enriquecimento conseguido "à quente",
quer dizer, arrancado de dentro de mim mesmo.
Com o correr dos anos fui aprendendo a me observar como artista e ser
humano, e fui tentando aproveitar em meus desenhos interpretativos a
linguagem interior de minha vivência pessoal, para conseguir assim
essa difícil união entre arte e vida, que foi sempre a minha grande
aspiração.
Sempre acreditei que cada ator traz consigo um material fantástico,
inimitável e único, muito difícil de ser conservado e desenvolvido
nesta nossa era brutalizada e massificada.
É um cálice de cristal interior, que deve ser preservado e defendido
através de muitos terremotos, muita contrariedade, muita decepção e
sensação de abandono, mas com momentos também de enorme luminosidade
que quando acontecem recompensam o artista e engrandecem o ser humano.
Cada ator é único e inimitável se ele mergulha com honestidade em si
mesmo, e retrata o seu semelhante com generosidade, verdade e paixão.
"Somos feitos da essência com que os sonhos são feitos" escreveu
Shakespeare, e essa é a melhor definição que conheço sobre o mistério
da representação.
O CAVALO
Cada ator tem obrigação de zelar e desenvolver o seu instrumental –
sua voz, seu corpo: seu cavalo. Devemos transformar nosso corpo num
grande arquivo de imagens com possibilidades de serem utilizadas em
nossos futuros personagens; nossa voz deve poder miar, rugir, gemer,
uivar – nossas mãos podem ser galhos de árvores, garras de feras,
folhas secas ao vento – nossos pés, colunas de um templo, patas de
animais. Nossos olhos devem poder reproduzir o enigma do olhar da
esfinge, e a clareza cristalina de um poema de Brecht.
E mais, devemos nos preparar para poder receber com artística
mediunidade a alma do mundo, as grandes interrogações do nosso tempo,
a voracidade deste universo em constante transformação.
Devemos ser suficientemente fortes para poder reproduzir
simultaneamente a maravilha e o horror do ser humano, a criatividade e
a autodestrutividade de nós todos, homens, através desta difícil
caminhada da vida.
O nosso cavalo deve então se preparar para poder assumir todas estas
formas, e por isso ele tem de ser constantemente reabastecido e
renovado.
O cavalo é também o estimulador de nossa energia, o conservador de
nosso entusiasmo e de nossa fé; quando as crises vierem (e não tenham
dúvida de que elas virão), nada melhor do que trabalhar na
fortificação do cavalo, porque no mínimo estaremos crescendo durante a
crise, estaremos trabalhando e temperando novas energias, adquirindo
novas técnicas, novos conhecimentos. Podem ter certeza de que um bom
cavalo torna o ator indestrutível.
O FOGO
O fogo através do tempo sempre foi o símbolo vivo da fé, do entusiasmo
e da rebeldia; mantê-lo aceso dentro de nós é também um trabalho para
a vida inteira. O fogo nasce de um estado de curiosidade natural e
instintivo e pode ser desenvolvido através da conquista progressiva de
uma cultura geral, de uma observação apaixonada da história do homem,
da história de todas as artes, da emocionante história do teatro – e
um profundo sentimento de observação do ser humano – aqueles para quem
realizaremos nossas mágicas, o nosso público. Esse fogo interno, uma
espécie de grande rol central de energia e fé, é uma grande defesa
contra a acomodação, e me parece ser a grande mola propulsora da
criatividade; devemos estar sempre atentos aos seus chamados, e é
preciso não deixar nunca, custe o que custar, esse fogo esmorecer,
porque, caso isso aconteça, seremos os artífices de uma arte morta,
sonâmbula, inútil, feia e resignada.
O MENINO
A recuperação da liberdade da infância através da vida adulta foi
sempre uma das minhas metas; a criança é uma fonte incrível de
informação artística - e a criança que nós fomos recuperada através do
nosso lado lúdico tão atrofiado pelo correr dos anos – pode nos servir
de guia, mas um guia muito especial, que caminha alegre e
despreocupado, que sabe descobrir o mágico dentro do cotidiano,
intuitivamente
Um grande exemplo da presença do menino dentro de um artista está na
figura e na obra do pintor Pablo Picasso. "Eu não procuro, eu acho"
afirmava o grande pintor. E essa fala denuncia o menino que Picasso
levava dentro de si, que pintava cerâmica usando como base para o
desenho a espinha do peixe que tinha comido no almoço, ou fazia
fantástica escultura aproveitando uma roda velha e quebrada de uma
bicicleta encontrada na estrada durante seu passeio matinal. O menino
traz alegria e descompromisso racional para o trabalho artístico. No
Passeio Público do Rio de Janeiro tem um menino-anjo esculpido num
bebedouro (se não me engano de Mestre Valentim) com a seguinte
legenda: "Sou útil, inda brincando". Essa é a lei e a sabedoria dos
meninos.
Acho que preservando o cálice, domando o cavalo, estimulando o fogo e
soltando o menino, o artista está preparado para viver e criar uma
vida bela e uma obra útil para a coletividade". Carta de Rubens Corrêa aos alunos da CAL em aula inaugural, 1984
Mônica Salmaso
http://www.youtube.com/watch?v=g3Jgt6xJEPc