História do Teatro Moderno e Contemporâneo

História do Teatro Moderno e Contemporâneo

aula nº1 - O naturalismo no teatro
aula nº2 - O simbolismo no teatro
aula nº3 - Os movimentos de vanguarda do ínício do século XX
textos:
1 - Inutilidade do Teatro
2 - Marcel Duchamp
3 - Manifesto Futurista


1 - DA INUTILIDADE DO TEATRO
Alfred Jarry

Creio que a questão de saber se o teatro se deve adaptar às massas ou as massas ao teatro está definitivamente resolvida. As referidas massas, antigamente, só eram capazes de compreender ou de fazer de conta que compreendiam os trágicos e os cómicos porque as suas fábulas eram universais e explicadas e voltadas a explicar quatro vezes em cada drama, e as mais das vezes preparadas por uma personagem-prólogo. Como hoje vão à Comédie-Française escutar Molière e Racine porque são representados de uma maneira contínua. Aliás está mais do que provado que o conteúdo lhes escapa. Como ainda não existe no teatro a liberdade de expulsar violentamente aquele que não compreende, e de evacuar a sala em cada intervalo antes do barulho e dos gritos, podemos contentar-nos com a verdade demonstrada de que as pessoas se hão-de bater (se é que se batem) na sala por uma obra de vulgarização, ou seja, nada original e portanto acessível antes do original., e que esta haverá de beneficiar pelo menos no primeiro dia o público estupefacto e, por consequência, mudo.

E no primeiro dia os que vierem esses podem compreender.

Há duas coisas que faria jeito dar ao público — se quiséssemos descer ao seu nível — e que nós lhe daremos: personagens que pensam como ele (um embaixador siamês ou chinês, a ouvir O Avarento há-de apostar que o avarento será enganado e o cofre do dinheiro apanhado) e das quais esse público compreende tudo com a seguinte impressão: "Como eu sou inteligente de me rir com estas piadas inteligentes"... e com a impressão de uma criação que até suprime a fadiga de pensar; e, em segundo lugar, temas e peripécias naturais, quer dizer, quotidianas às pessoas comuns, considerando-se que Shakespeare, Miguel Ângelo ou Leonardo da Vinci são um bocadinho amplos de mais e de um diâmetro difícil de atingir porque gênio e entendimento ou até talento, não sendo coisas da natureza, não são coisas ao alcance da maioria.

Se houver em todo o universo quinhentas pessoas que sejam um bocadinho Shakespeare e Leonardo em relação à mediocridade infinita, não será justo permitir a esses quinhentos espíritos bons o que ofertamos generosamente aos auditores..., ou seja, o repouso de não ver no palco aquilo que não compreendem e de ter o prazer activo de criar também um bocadinho à sua medida e de compreender?

O que se vai seguir é um índice de alguns objectos notoriamente horrorosos e incompreensíveis a esses quinhentos espíritos e que atravancam o palco sem utilidade, e logo em primeiro lugar o cenário e os actores.

O cenário é híbrido, nem natural nem artificial. Se fosse semelhante à natureza, seria uma mera duplicação sem interesse... Mais à frente falaremos da natureza-cenário. O cenário não é artificial no sentido de não dar ao artista a realização do exterior visto através de si mesmo ou melhor criado por si próprio.

Ora, seria muito perigoso que o poeta impusesse a um público de artistas o cenário tal qual ele o pinta. Numa obra escrita, quem souber ler verá o sentido que aí se encontra escondido de propósito para si... A tela pintada realiza um aspecto que se desdobra para muito poucos espíritos, sendo mais difícil extrair a qualidade da qualidade do que a qualidade da quantidade. E é justo que cada espectador veja a cena no cenário que melhor convém à sua visão da cena. Pelo contrário, diante de um grande público, qualquer cenário artístico é bom, já que a multidão não compreende por si mesma mas de acordo com a autoridade.

Há duas espécies de cenário, interiores e a céu aberto. As duas têm a pretensão de representar salas ou campos naturais. Não voltaremos a falar da questão entendida de uma vez por todas sobre a estupidez do trompe-l'oeil. Mencionemos que o dito trompe-l'oeil provoca a ilusão àquele que vê grosseiramente, isto é, àquele que não vê, e escandaliza aquele que vê de modo inteligente e eligente a natureza, apresentando-lhe a caricatura por meio daquele que não compreende...

O cenário feito por aquele que não sabe pintar aproxima-se mais do cenário abstracto, dando somente a essência; como o cenário que soubéssemos simplificar dando somente o que é útil.

Nós experimentámos já os cenários heráldicos, quer dizer, os cenários que designam só com uma cor e uniforme toda uma cena ou um acto, com as personagens passando harmoniosamente sobre esse fundo de brasão. Isto será um tanto pueril, dado que a dita cor realça melhor (e com mais exactidão, pois é preciso ter em conta o daltonismo universal e todas as idiossincrasias) sobre um fundo que não tenha cor. Consegue-se isto simplesmente e de uma maneira simbolicamente exacta com uma tela sem tinta ou com um avesso de cenário, cada um penetrando o lugar que se quer, ou melhor, se o autor tiver sabido o que quer, o verdadeiro cenário em exosmose sobre o palco. O cartaz trazido em cada mudança de cena evita, como nas mudanças dos cenários materiais, estar constantemente a lembrar ao não-espírito de que nos damos conta, sobretudo nesses momentos da sua diferença.

Nestas condições, toda a porção de cenário de que tenhamos uma especial necessidade, janela que se abre, porta que se arromba, é um acessório e pode ser transportado como uma mesa ou um archote.

O actor "faz a cara", e deveria fazer todo o corpo, da personagem. Diversas contracções e extensões faciais dos músculos dão as expressões, os jogos fisionómicos, etc. Ninguém pensou que os músculos continuam os mesmos sob o rosto fingido e pintado, e que Mounet* e Hamlet não têm os mesmos zigomáticos, se bem que anatomicamente se pense que só há um homem. O actor deverá substituir a sua cabeça por uma máscara de cabeça, efígie da PERSONAGEM, que não terá, como à antiga, carácter de choro ou riso (o que não é um carácter) mas carácter de personagem: o Avarento, o Hesitante, o Ávido empilhando os crimes...

E se o carácter eterno da personagem está incluído na máscara, há um meio simples, paralelo ao do caleidoscópio e sobretudo ao do giroscópio, de pôr em luz um a um ou vários em conjunto, os momentos acidentais.

O actor fora de moda, mascarado com tintas pouco proeminentes, eleva à potência cada expressão por meio das tintas e sobretudo dos relevos, e depois ao cubo e a expoentes indefinidos por meio da LUZ.

O que vamos explicar era impossível no teatro antigo, com uma luz vertical ou nunca suficientemente horizontal sublinhando de sombra qualquer saliência da máscara e nunca com suficiente nitidez por ser difusa.

Contrariamente às deduções da rudimentar e imperfeita lógica, nos países solares não há uma sombra nítida, e no Egipto, sob o Trópico de Câncer, não há quase réstia de sombra sobre os rostos, a luz sendo reflectida verticalmente como na face da lua, difusa, e na areia do solo e na areia suspensa no ar.

A ribalta ilumina o actor segundo a hipotenusa de um triângulo rectangular, sendo o seu corpo um dos lados do ângulo direito. E sendo a ribalta uma série de pontos luminosos, quer dizer, uma linha que se estende indefinidamente, em relação à estreiteza da face do actor, à direita e à esquerda da intersecção do seu plano, deve ser considerada como um ponto único de luz, situado a uma distância indefinida, como se estivesse por detrás do público.

Este ponto dista na sequência de um mínimo infinito, mas não suficientemente mínimo para que se possa considerar todos os raios reflectidos pelo actor (seja todos os olhares) como paralelas. E praticamente cada espectador vê a máscara pessoal de uma maneira igual, com diferenças sem importância, em comparação com as idiossincrasias e aptidões a compreender diferentemente, impossíveis de atenuar, mas que se neutralizam numa multidão do género manada, isto é, multidão.

Por meio de lentos gestos de cima para baixo e de baixo para cima e oscilações laterais, o actor desloca as sombras na superfície de sua máscara. E a experiência prova que as seis posições principais (e o mesmo para o perfil, posições menos nítidas) são suficientes a todas as expressões. Não damos exemplos porque as posições variam segundo a essência primeira da máscara, e porque todos aqueles que já viram um Guinhol puderam observá-las.

Como são expressões simples, elas são universais. O grave erro da pantomima actual é o de chegar à linguagem mímica convencional, fastidiosa e incompreensível.
Exemplo dessa convenção: uma elipse vertical à volta da cara com a mão e um beijo nessa mão para dizer a beleza sugerindo o amor.

Exemplo de gesto universal: a marioneta mostra o seu espanto por um recuo violento e pelo choque do crânio contra um dos bastidores.

Através de todos estes acidentes subsiste a expressão substancial, e em muitas cenas o mais belo é a impassibilidade da máscara una, largando palavras hilariantes ou sérias. Isto não se pode comparar senão à mineralidade do esqueleto dissimulado sob as carnes animais, a que desde sempre se reconheceu um valor trágico-cómico.

Diga-se que é preciso que o actor tenha uma voz especial, que é a voz do seu papel, como se a cavidade da boca da máscara não pudesse emitir senão aquilo que a máscara diz, se os músculos dos lábios fossem maleáveis. E é até melhor que não sejam maleáveis, e que o registro em toda a peça seja monótono.

E já dissemos também que será necessário que o actor se faça um corpo para o papel.
Numa frase de um prefácio de Beaumarchais, o travesti, proibido pela Igreja e pela arte: "Não existe nenhum rapaz formado o suficiente para...". A mulher, ser que até à velhice é imberbe e de voz aguda com vinte anos representa, segundo a tradição parisiense, a criança de catorze, com a experiência de seis anos mais. Isto compensa pouco o ridículo do perfil e a inestética do andar, a linha engrossada em todos os músculos pelo tecido adiposo odioso porque útil, gerador do leite.

Pela diferença dos cérebros, uma criança de quinze anos, se for escolhida uma inteligente (porque achamos que a maior parte das mulheres é vulgar, a maior parte dos rapazes estúpidos, com algumas excepções superiores), representará adequadamente o seu papel, exemplo o jovem barão na companhia de Molière, e toda essa época do teatro inglês (e todo o teatro antigo) onde ninguém ousaria confiar esse papel a uma mulher.

Algumas palavras sobre os cenários naturais, que existem sem cópia, se se tentar a montagem de um drama em plena natureza, na encosta de uma colina, ao pé de um rio, o que é excelente para a projeção da voz, sobretudo sem toldo, pois que o som se perde; as colinas chegam, com algumas árvores para a sombra. Representa-se hoje, como há um ano atrás, ao vento Le Diable marchand de Goutte e a ideia foi completada no anterior Mercure do senhor Alfred Vallette. Há uns três ou quatro anos, o senhor Lugné-Poe, com uns amigos, deu em Presles, perto da floresta de Isle-Adam, num teatro natural escavado na montanha, La Gardienne. Neste tempo de ciclismo universal, algumas sessões dominicais, num Verão, muito poucas (de duas a cinco), de uma literatura à partida não muito abstrata (O Rei Lear por exemplo; nos não compreendemos essa ideia de um teatro do povo), num campo pouco distante, com arranjos possíveis para os que usam o caminho-de-ferro, sem preparativos prévios, os lugares ao sol gratuitos... e os estrados simples transportados em um ou vários automóveis, não seriam absurdas.


(In Ubu, Paris, Gallimard, 1978, pp. 307-311)
Tradução de Eugenia Vasques

2 - Marcel Duchamp
Texto Dr Camillo Osorio, Julho 2001
http://www.niteroiartes.com.br/cursos/la_e_ca/modulos2.html (acessado em 30/08/2010 às 12:00)

Para além do desconforto que suscita, Duchamp (1889-1968) é o artista que mais radicalmente redefiniu o fazer artístico desde Leonardo da Vinci. Em um mundo dominado pela lógica da eficácia e da produção, ele re-inventou o ócio, separando inspiração de transpiração, valor de trabalho. Sua poética singularíssima leva adiante a definição de Leonardo de que a arte é coisa mental.
Como fiz no texto passado sobre Picasso e Matisse, gostaria de tomar um livro como norteador de nossa conversa, refiro-me a "Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido", de Pierre Cabanne, que apresenta uma longa entrevista com o artista dois anos antes de sua morte, em 1968. Já consagrado, vendo por toda parte sua atitude irreverente e iconoclasta transformar-se em hábito poético, ele fala, com o sarcasmo de sempre, sobre a sua trajetória. Coerente com sua obra, não há nenhuma revelação fundamental. Duchamp é um niilista que entendeu profundamente a sua (nossa) época. Sem ideologia ou moral, descrente dos grandes gestos ou das grandes causas, sua estética foi essencialmente ética. Antes de tudo, viveu e criou em nome da liberdade. Recusou todos os compromissos, da família à profissão, em nome da integridade e da coerência de sua obra e de sua vida.
De família culta, tendo dois irmãos mais velhos já artistas - eram ao todo seis -, ele cresceu em um ambiente apropriado e estimulante. Dos 15 aos 24 anos dedicou-se à pintura. Era um pintor bastante razoável, apesar de toda sua hesitação estilística. Sua pintura mais notável foi certamente o Nú descendo a escada que depois de rejeitado no Salão de Outono de Paris, 1911, fez enorme sucesso no Armory Show de Nova York em 1912, evento responsável pela introdução da arte moderna nos Estados Unidos. Esta receptividade foi decisiva para a vida de Duchamp, que a partir daí passou a viver entre Paris e Nova York.
A saída da Europa foi na verdade a possibilidade de respirar um ar menos contaminado pela tradição. Nova York ainda era uma cidade provinciana que buscava refinar-se. Ao mesmo tempo em que a pintura francesa mergulhava no retorno à ordem pós-cubista, Duchamp tinha em Nova York um lugar ideal para desconstruir toda e qualquer ordem junto aos seus amigos dadaístas Man Ray e Picabia. Depois do sucesso no Armory Show, ele abandona a pintura. De 1913 até sua morte em 1968, Duchamp será um artista bissexto de poucas obras e muito escândalo.

Dois trabalhos merecem destaque. Primeiro, O Grande Vidro ou A Noiva despida por seus Celibatários, mesmo, iniciado em 1915 e definitivamente inacabado em 1925, quando, por acidente, um pedaço do vidro fica rachado. A fragilidade e transparência do suporte, o aspecto mecânico das imagens, o tema erótico-delirante, e a incorporação do acaso na (ir)realização do trabalho, dão-lhe uma importância ímpar. O jogo com as palavras no título das obras também começa a entrar em cena. A sonoridade na lingua francesa de 'mesmo' (même) confunde-se com 'me ama' (m'aime). Como observou Octavio Paz, no seu livro sobre o artista intitulado "Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza", o Grande Vidro "é um enigma e, como todos os enigmas, não é algo que se contempla mas sim que se decifra". Outro trabalho, ou melhor, outra idéia estética que será introduzida por Duchamp e marcará sua obra e posteridade, é o ready-made. Transferindo objetos corriqueiros para os museus e designando-os objetos de arte, ele realiza o gesto mais radical e banalizante da arte em nosso século.
O exemplo de Sócrates, que sem jamais escrever uma única linha é considerado o pai da filosofia grega e da ética ocidental, sempre me vem à cabeça quando olho a obra de Duchamp. Sócrates ficou na história através de Platão e outros discípulos. Da mesma forma, a obra de Duchamp deve ser vista não apenas nela mesma, mas na variada descendência germinada na sua atitude anti-artística, na sua anti-obra.
Neste aspecto, visitar o Museu da Filadélfia onde se encontra a maioria de seus trabalhos, é algo paradoxal. Está tudo lá, mas não há muito o que ver, não ficamos boquiabertos, não se realiza o maravilhamento a que estamos habituados diante das grandes obras da história. Sua obra exige que o espectador se desfaça das expectativas habituais diante da pintura ou escultura. Não é pelo embate puramente estético que lidamos com seus trabalhos. Eles não apelam aos nossos sentidos, mas à nossa imaginação, exigindo mediações incomuns em se tratando de artes visuais.
É claro que não digo com isso que não haja imaginação no ato perceptivo, nem que um quadro de Rembrandt ou de Cézanne falem apenas à nossa sensibilidade. O ponto é apenas que Duchamp cria uma outra coisa que foge das categorias tradicionais e dos hábitos arraigados. Ele inventa um outro tipo de arte e simultaneamente um outro tipo de espectador. Do Renascimento até Picasso as transformações artísticas se deram no interior de uma linguagem pictórica, de uma concepção histórica da forma e do objeto artístico. Foi Duchamp e o dadaismo, que para o bem e para o mal, tomaram um outro caminho.

Na verdade, o ponto crucial do pensamento-obra de Duchamp é a separação entre arte e visão. Como observou Octavio Paz, "Picasso tornou visível o nosso século; Duchamp nos mostrou que todas as artes, sem excluir a dos olhos, nascem e terminam em uma zona invisível. À lucidez do instinto opôs o instinto da lucidez: o invisível não é obscuro nem misterioso, mas transparente..." Esta comparação entre Picasso e Duchamp é pertinente. O primeiro transformou tudo em arte, enquanto Duchamp, sem transformar nada, fez com que tudo pudesse ser arte. O fato de tudo poder ser arte, não implica em que qualquer coisa seja arte. Na verdade a 'coisa' pouco importa, o artístico não quer se fixar no gesto criativo liberado por Duchamp.
Até bem pouco tempo, a discussão do legado duchampiano vinha associada à morte das formas tradicionais de arte. Tudo bem, ele mesmo, ao longo da entrevista, fala algumas vezes que a pintura morreu, que não há mais sentido algum em se pegar um pincel para se fazer arte; mas não é essa a questão. Não interessa a disjuntiva - ou objeto ou pintura - como não interessam as separações cristalizadas entre forma e vida, olho e espírito. A importância de Duchamp não exclui Pollock, Stella ou Amilcar de Castro. Ela apenas inclui a possibilidade de existirem John Cage, Hélio Oiticica, Andy Warhol ou Gary Hill.
A sua presença na história da arte moderna amplia os territórios e a natureza do fenômeno artístico. Não é à toa que na lista das inclusões acima, há um músico, como também poderia ter um dançarino, um escritor, um cineasta. O desvio de Duchamp é um desvio em direção à origem, onde as formas são indiferenciadas e o que importa é a invenção de novos sentidos para o mundo. O paradoxo é o seguinte: ninguém de bom senso deixaria de ver uma exposição de Matisse para ver uma de Duchamp, apesar de Duchamp ser mais importante para o século XX que Matisse - por favor, ser mais importante não implica, neste caso, em ser melhor! Sua obra transita na linha abissal e milimétrica que separa a banalidade da transcendência, o visível do invisível. Na verdade ela não está nos museus mas sim entranhada em nossa cultura e comportamento, inspirando constantemente nossa imaginação.

3 - Manifesto Futurista

"Então, com o vulto coberto pela boa lama das fábricas - empaste de escórias metálicas, de suores inúteis, de fuligens celestes -, contundidos e enfaixados os braços, mas impávidos, ditamos nossas primeiras vontades a todos os homens vivos da terra:

1. Queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e da temeridade.


2. A coragem, a audácia e a rebelião serão elementos essenciais da nossa poesia.


3. Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Queremos exaltar o movimento agressivo, a insónia febril, a velocidade, o salto mortal, a bofetada e o murro.


4. Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um carro de corrida adornado de grossos tubos semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia.


5. Queremos celebrar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita.


6. O poeta deve prodigalizar-se com ardor, fausto e munificência, a fim de aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.


7. Já não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um carácter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas para obrigá-las a prostrar-se ante o homem.


8. Estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Vivemos já o absoluto, pois criamos a eterna velocidade omnipresente.


9. Queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo -, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo da mulher.


10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo o tipo, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária.


11. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos a maré multicor e polifônica das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor nocturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas eléctricas: as estações insaciáveis, devoradoras de serpentes fumegantes: as fábricas suspensas das nuvens pelos contorcidos fios de suas fumaças; as pontes semelhantes a ginastas gigantes que transpõem as fumaças, cintilantes ao sol com um fulgor de facas; os navios a vapor aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de amplo peito que se empertigam sobre os trilhos como enormes cavalos de aço refreados por tubos e o voo deslizante dos aviões, cujas hélices se agitam ao vento como bandeiras e parecem aplaudir como uma multidão entusiasta.




É da Itália que lançamos ao mundo este manifesto de violência arrebatadora e incendiária com o qual fundamos o nosso Futurismo, porque queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários.

Há muito tempo que a Itália vem sendo um mercado de belchiores. Queremos libertá-la dos incontáveis museus que a cobrem de cemitérios inumeráveis.

Museus: cemitérios!... Idênticos, realmente, pela sinistra promiscuidade de tantos corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios públicos onde se repousa sempre ao lado de seres odiados ou desconhecidos! Museus: absurdos dos matadouros dos pintores e escultores que se trucidam ferozmente a golpes de cores e linhas ao longo de suas paredes!

Que os visitemos em peregrinação uma vez por ano, como se visita o cemitério dos mortos, tudo bem. Que uma vez por ano se desponte uma coroa de flores diante da Gioconda, vá lá. Mas não admitimos passear diariamente pelos museus, nossas tristezas, nossa frágil coragem, nossa mórbida inquietude. Por que devemos nos envenenar? Por que devemos apodrecer?

E que se pode ver num velho quadro, senão a fatigante contorção do artista que se empenhou em infringir as insuperáveis barreiras erguidas contra o desejo de exprimir inteiramente o seu sonho?... Admirar um quadro antigo equivalente a verter a nossa sensibilidade numa urna funerária, em vez de projectá-la para longe, em violentos arremessos de criação e de acção.
Quereis, pois, desperdiçar todas as vossas melhores forças nessa eterna e inútil admiração do passado, da qual saís fatalmente exaustos, diminuídos e espezinhados?

Em verdade eu vos digo que a frequentação quotidiana dos museus, das bibliotecas e das academias (cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos crucificados, registros de lances truncados!...) é, para os artistas, tão ruinosa quanto a tutela prolongada dos pais para certos jovens embriagados, vá lá: o admirável passado é talvez um bálsamo para tantos os seus males, já que para eles o futuro está barrado... Mas nós não queremos saber dele, do passado, nós, jovens e fortes futuristas!

Bem-vindos, pois, os alegres incendiários com os seus dedos carbonizados! Ei-los!... Aqui!... Ponham fogo nas estantes das bibliotecas!... Desviem o curso dos canais para inundar os museus!... Oh, a alegria de ver flutuar à deriva, rasgadas e descoradas sobre as águas, as velhas telas gloriosas!... Empunhem as picaretas, os machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas!

Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: resta-nos assim, pelo menos um decénio mais jovens e válidos que nós deitarão no cesto de papéis, como manuscritos inúteis. - Pois é isso que queremos!

Nossos sucessores virão de longe contra nós, de toda parte, dançando à cadência alada dos seus primeiros cantos, estendendo os dedos aduncos de predadores e farejando caninamente, às portas das academias, o bom cheiro das nossas mentes em putrefacção, já prometidas às catacumbas das bibliotecas.

Mas nós não estaremos lá... Por fim eles nos encontrarão - uma noite de inverno - em campo aberto, sob um triste telheiro tamborilado por monótona chuva, e nos verão agachados junto aos nossos aviões trepidantes, aquecendo as mãos ao fogo mesquinho proporcionado pelos nossos livros de hoje, flamejando sob o voo das nossas imagens.

Eles se amotinarão à nossa volta, ofegantes de angústia e despeito, e todos, exasperados pela nossa soberba, inestancável audácia, se precipitarão para matar-nos, impelidos por um ódio tanto mais mais implacável quanto os seus corações estiverem ébrios de amor e admiração por nós.

A forte e sã injustiça explodirá radiosa em seus olhos - A arte, de facto, não pode ser senão violência, crueldade e injustiça.

Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: no entanto, temos já esbanjado tesouros, mil tesouros de força, de amor, de audácia, de astúcia e de vontade rude, precipitadamente, delirantemente, sem calcular, sem jamais hesitar, sem jamais repousar, até perder o fôlego... Olhai para nós! Ainda não estamos exaustos! Os nossos corações não sentem nenhuma fadiga, porque estão nutridos de fogo, de ódio e de velocidade!... Estais admirados? É lógico, pois não vos recordais sequer de ter vivido! Erectos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas!
Vós nos opondes objecções?... Basta! Basta! Já as conhecemos... Já entendemos!... Nossa bela e hipócrita inteligência nos afirma que somos o resultado e o prolongamento dos nossos ancestrais. - Talvez!... Seja!... Mas que importa? Não queremos entender!... Ai de quem nos repetir essas palavras infames!...
Cabeça erguida!...
Erectos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas."
(O Manifesto Futurista foi escrito por Filippo Tommaso Marinetti e publicado no jornal francês "Le Figaro", em Fevereiro de 1909. Foi o início de um dos mais importantes movimentos artísticos do século XX: o Futurismo)

Aula nº 4 - A questão do texto

Aula nº 5 - Antonin Artaud


Programa da peça Cartas a Rodez, direção Ana Teixeira, grupo AMOK
http://www.interface.org.br/revista5/espaco1.pdf

Filme: O encouraçado de Potemkin (1925) - Sergei Eisenstein
http://www.youtube.com/watch?v=LDKKN-KILIY

Aula nº 6 - Bertold Brecht

texto: Pequeno Organom para o teatro